domingo, 11 de abril de 2010

UMA CRÔNICA DE VALERIA SURREAUX


Tarado

Tinha asco do cheiro dele, daquela mão alva com dedos amarelados de nicotina, os dentes estragados. Logo a avó com tanto nojo de bocas alheias não mandou o guri a um dentista para dar um jeito naquilo. Seria mais digno, mais generoso do que separar as louças: as da casa e as dos serviçais.
Deu para chegar borracho nos dias de folga, com cheiro de canha e cigarro de matar mosquito.
Um dia se aventuraram ilicitamente, infiltrando-se naquele quarto amarelo e vasculharam suas gavetas descobrindo um sem número de calcinhas. Tarado - sussurrou Marina com os olhos arregalados segurando uma calcinha de cetim vermelho com a ponta dos dedos.
- Tarado? Perguntou Corinta.
- Tarado que coleciona calcinhas, idiota.
Ela sabia que algo havia de errado naquela inusitada coleção, só não sabia que sua irmã tinha um nome para designar o gosto pouco usual e sentiu-se, mais uma vez, muito menos esperta que ela que já no outro dia cochichou ao seu ouvido quando o viu passar assoviando a Comparcita: Fetichista!
Palavra que primeiro remeteu Corinta a um fumegante prato de massa com cogumelos e molho branco e depois a um homem que arrumava feixes. De feiche clair. Uma coisa ela tinha certeza: Marina saiu em busca dessa definição com alguma pessoa, ou em um livro, ou dicionário.
- Fetichista?
- É. É uma tara por calcinhas ou outra coisa, tipo salto alto.
- Salto alto? Como assim?
- Pshh!!! Ele é tarado e a vó nem sabe, vai à cabeleireira, o vô vai ao café e quem nos cuida é o tarado das calcinhas, o fetichista.
- Fetuttini que é a massa. Fetichista é quem gosta de calcinha e salto alto.
Aracy cheirando a talco atravessa o pátio mormacento.
- Aracy, tu sabias que o Carlos é fetichista?
- Feti o que? É pau pra toda obra? Faz tudo? Isso?
- Não. Tarado.
- Bem que eu notei que ele chuleia minhas ancas quando passo- falou com um sorriso malicioso –deve querer se deitar comigo, o desgracento.
Marina dá uma gargalhada:
- Aracy,o Carlos tem 24 anos e tu 83, criatura.
- Mas não é pra isso que servem os tarados?



PS.: deve ter sido publicada no jornal
Tribuna de Uruguaiana, não tenho certeza. É que pedi à Valeria algumas crônicas antigas, para outra finalidade, mas esta resolvi publicar. Tomara que não me processe!

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