quarta-feira, 9 de junho de 2010


CORREIO DO POVO - ANO 115 - Nº 248 - PORTO ALEGRE, SÁBADO, 5 DE JUNHO DE 2010 - Juremir Machado da Silva

Eu sou vira-lata

Nunca entendi aquela história do Nelson Rodrigues sobre o complexo de vira-lata. Eu acho Nelson Rodrigues um chato. Mais chatos ainda são os piolhos de celebridades ou os gigolôs de valores seguros, que passam a vida resenhando livros publicados há 20, 50, cem ou 500 anos como se fossem a última novidade. Até parece que a genialidade em arte é monopólio do passado. Os brasileiros fanáticos por Pelé e por uma boa patriotada consideram uma heresia imaginar alguém melhor do que o nosso "rei" do futebol. Os argentinos estão convencidos de que Maradona foi melhor. Os patriotas brasileiros acreditam que se trata de uma patriotada argentina. Esse negócio de melhor de todos os tempos é apenas uma escolha, feita num determinado momento, que colou. Não é objetiva, muito menos científica, embora se apoie em algumas evidências. Não passa de um imaginário sólido.

A ciência de hoje é mais evoluída que a de ontem. Por que só a arte, o futebol e a filosofia seriam menos desenvolvidos? Aristóteles e Platão acertaram e erraram quase tanto quanto o Jonas como atacante do Grêmio. Aristóteles, conhecido pela sua capacidade de observação, achava que as mulheres tinham menos dentes e costelas do que os homens. Seus defensores costumam alegar que lhe faltavam instrumentos, o que só comprovaria a sua genialidade. Com certeza, apalpar uma mulher ou dar uma espiada na sua dentadura exige muita tecnologia. Nós, os invejosos, não perdemos oportunidade de atacar um mito. Basta o sujeito falar na minha frente, "Machado era...", referindo-se, obviamente, a Machado de Assis, ou "o Nelson...", falando de Nelson Rodrigues, para virar meu inimigo. Acho chatos todos aqueles que são mais famosos do que eu. Ou seja, todo mundo. Sou muito ressentido.

Mas nunca tive complexo de vira-lata. Eu sou vira-lata. Tenho porte de vira-lata, latido de vira-lata, rosnado de vira-lata, cara de vira-lata, postura de vira-lata, persistência de vira-lata, coragem de vira-lata, dignidade e orgulho de vira-lata. Um vira-lata jamais reconhece a grandeza de um cão de raça. Eu acho horrendo esses cachorros de marca. Têm uns que parecem ratos com grife. Outros, têm caras de assassino. Jean Baudrillard disse que a cena característica do final do século XX era a de um homem sentado diante da sua televisão sem imagens num dia de greve. A cena característica deste começo de século XXI é a de uma loura siliconada beijando seu Pitbull na boca dentro de uma camionetona 4x4. Vi essa cena no domingo. Nós, vira-latas, ficamos revoltados com isso. Eu sou o colunista mais vira-lata do país. Juro.

Posso provar. Um colunista vira-lata diz isto e aquilo, tudo e o contrário, contradiz-se e contradiz sem mais nem menos, late para a esquerda e para a direita, morde a canela dos adversários e recebe chutes na orelha. Nunca desiste. Faz um barulho danado. Depois, vai dormir embaixo de uma cadeira. Podem me chamar de Aristóteles. Mas atendo também por Totó. Eu sou vira-lata e não nego. Não é por acaso que adoro latir: uau! uau! Que loucura.

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