segunda-feira, 28 de junho de 2010

Tenho emoldurada na parede aqui na minha frente a página 41 da Zero Hora de 04/09/1999 com A VIDA QUE NINGUÉM VÊ, O GAÚCHO do cavalo-de-pau, sobre o Vanderlei, personagem da paisagem de muitos de meus dias há 20 ou 25 anos (qualquer hora escaneio ou reproduzo aqui), assinada por Eliane Brum, a guapa aí da foto ao lado.

Dela já havia lido a série Laços de Sangue, sobre o bárbaro crime de um jovem de 33 anos - a facadas, matara pai e mãe, bem sucedidos, paroquianos católicos do bairro Floresta, em Porto Alegre, bons e exemplares por tudo o que construíram (e geraram) até então, idos de 1994 ou 1995.

Agora a moça, na Época desta semana, vem contar das cartas de amor presenteadas ... Deixemos que ela fale ...

28/06/2010
Cartas de amor
Por que sempre adiamos o momento de dizer o que sentimos?
Meu pai fez 80 anos. Queríamos dar a ele um presente que fosse mais do que algo que ele pudesse usar. Um que não servisse para nada, a não ser para a vida. Decidimos fazer um livro com cartas de amor. Não as cartas do passado, trocadas entre ele e minha mãe, mas as cartas do presente, que todos escreveriam. Cartas de amor dos filhos, dos netos, da companheira de toda uma vida. Dos sobrinhos mais próximos, dos amigos mais queridos, dos alunos e companheiros de trabalho com quem compartilhou seus ideais mais caros. Cartas de amor, enfim, escritas por quem havia testemunhado sua vida – e se transformado pela sua vida. Só havia uma regra para as cartas de amor: elas tinham de ser ridículas.

Para que ninguém se sentisse desconfortável com o desafio de escrever cartas de amor ridículas, ficamos na companhia ilustre de Fernando Pessoa, com a poesia famosa de Álvaro de Campos: “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor./ Como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas./ Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas (...)”.

Encomendar cartas de amor ridículas era um jeito de escapar das cartas laudatórias e de estimular os mais ariscos na demonstração de sentimentos a escrever com o coração ou mesmo com o fígado. Não era um campeonato de quem escrevia mais bonito, mas uma oportunidade imperdível de dizer para o meu pai o quanto cada um o amava, do jeito único que cada um podia dizer, numa história com o meu pai que era só sua.

As reações foram as mais diversas – e bem divertidas. Enquanto uns se desincumbiram bem rápido da missão, outros tinham certeza de que não conseguiriam até o último instante. Meu sobrinho, o mais jovem da família, achava que carta não era coisa da geração dele, para a qual até email já era ultrapassado. Acabou descobrindo que é do tempo das cartas e escrevendo uma bem bonita. Meu irmão do meio, que é físico, sofreu e sofreu e sofreu – e quase na prorrogação enviou uma criativa carta com duas vozes. Fez até desenhos! Finalmente a gente descobria que aqueles mais xucros, os que cumprimentam meu pai com um aperto de mão e uns tapas nas costas, porque homem que é homem só abraça mulher, deixariam Fernando Pessoa orgulhoso.

Conto essa história para que, quem sabe, mais gente se decida a escrever cartas de amor ridículas. Acho que a maioria de nós tem muito a dizer para as pessoas da sua vida, mas adia para algum momento que talvez nunca chegue. Cumprimos horários para tudo, inclusive para o que é bem supérfluo, mas parece que sempre podemos deixar para amanhã dizer às pessoas importantes que, sim, elas são importantes para nós, que trazemos um pouco delas em nossos gestos, nas nossas escolhas, na porção imaterial de nossas células. Só que é arriscado adiar, porque o amanhã é incerteza, só o que temos é o hoje.

Dá para deixar para amanhã a academia, a manicure, a balada com os amigos, a compra de um jeans, um sapato, um computador ou um carro novo. Dá para deixar quase tudo para amanhã, menos dizer a quem amamos – que amamos. Não apenas no caso do amor romântico, mas em todo tipo de amor. Se pararmos para pensar, muito do que achamos inadiável é passível de prorrogação ou até mesmo desnecessário. Já o essencial, tanto protelamos, perdidos nos muitos supérfluos, que um dia pode ser tarde.

Tenho feito o exercício de reconhecer no traçado da minha vida as pessoas que me tornaram o que sou. Não apenas meus pais, mas gente que nem imaginava que tinha sido tão substantiva para mim, como a moça da livraria de Ijuí, para quem escrevi uma de minhas primeiras colunas – A história de Lili Lohmann.

Não somos em si. Somos para o outro. Só sabemos quem somos porque alguém nos reconhece. Quando olham para nós, mas não nos enxergam, é destruidor. Este olhar é violento porque nos atravessa. Já o olhar que nos reconhece faz com que nos tornemos melhores do que somos, para estar à altura de quem já nos vê melhores. Quando dizemos a alguém que é importante, que nossa vida é mais viva porque esta pessoa existe, ela também se redescobre pelo nosso olhar amoroso. E estas redescobertas de si mesmo são transformadoras – para quem vê e para quem é visto. Acho que vale a pena identificar quem são as verdadeiras celebridades da nossa vida – aquelas que podem ser anônimas para o mundo inteiro, mas não para nós.

Esta é uma época em que se fala muito. Quase todos falam o tempo todo. É difícil encontrar alguém para entabular uma conversa de silêncios. Muitas vezes as pessoas falam e falam, mas não é um diálogo. Não há uma troca, um dizer para o outro, para depois escutar o que o outro tem a dizer. Ao contrário, parece uma fala sem endereço. Mais um ato desesperado de manter-se falando para ter certeza de que existe. Acho que falamos tanto, nisto que a psicanálise chama de “fala vazia”, por falta de olhar que nos reconheça na singularidade do que somos. Algo como: já que ninguém diz que sou importante, então fico repetindo ao infinito que sou importante, para todos e para ninguém. Quando mais duvido, mais preciso falar.

Mesmo hoje, quando tantos escrevem na internet, em blogs e outras ferramentas, ainda que se fale por meio de símbolos gráficos, é uma fala – não uma escrita. Em muitos casos, a mesma verborragia para ninguém. Por isso acho importante que reabilitemos as cartas. Escrever é um exercício profundo de elaboração dos sentimentos e das ideias. Quando começamos, nunca sabemos para onde a escrita vai nos levar. Vamos nos descobrindo em letras, nos constituindo em palavras. E sempre, sempre mesmo, nos surpreendemos com o que escrevemos.

As cartas são sempre para alguém. Para existir uma carta é preciso que haja um endereçamento, é necessário nomear aquele para quem escrevemos. Ainda que em certo sentido sempre escrevamos para nós mesmos, a carta é obrigatoriamente para um outro. Pressupõe um diálogo. E é um diálogo de reconhecimentos mútuos.

Outra qualidade das cartas é que são para todos. Podemos não saber escrever um livro, um artigo, uma tese de doutorado, uma reportagem, poesia. Mas quem se alfabetizou sabe escrever uma carta. Porque na carta, mais importante que a habilidade com as palavras, é a capacidade de ser verdadeiro. A carta que nos emociona não é aquela que tem o melhor estilo, mas aquela que expressou com mais sinceridade os sentimentos de quem escreveu. É aquela que nos faz identificar o cheiro, os gestos, a voz e também as palavras de seu autor. A melhor carta é a encarnada. Para isso, não é preciso tornar-se um mestre das palavras, mas talvez algo tão ou mais difícil, mas que depende apenas de uma decisão interna: é preciso ter a coragem de ser.

É curioso como há livros de cartas para todos os gostos. Trocas de cartas entre intelectuais, antologias de cartas de amor de todos os tempos, cartas de fulano para beltrano, até no primeiro filme baseado no seriado americano Sex in the city, as cartas de amor faziam parte do enredo. Se há tantos livros é porque as pessoas gostam de cartas. Então por que não as escrevemos? Será que preferimos continuar falando sozinhos?

O computador e a internet estão aí para tornar ainda mais fácil a operação mecânica do processo. Não a efêmera e loquaz troca de emails, mas aquilo que faz de uma carta uma carta: a disposição de se abrir para o outro. Não qualquer outro, mas aquele que escolhemos como alguém importante o suficiente para dizermos algo a ele. Não o supérfluo, mas o essencial. É possível escrever uma carta por email, como é possível escrever uma carta por qualquer meio. Mas, em geral, usamos o email para falar tudo e qualquer coisa. Nas cartas, só escrevemos aquilo que precisa ser dito. Enviamos emails para qualquer um – cartas só escrevemos para os inscritos na nossa vida.

Eu mesma, que ganho a vida escrevendo, me surpreendi com minha carta de amor para meu pai. Penso sobre a relação com ele desde que me entendo por gente. E estou sempre me questionando sobre tudo. Descobri, porém, que “desconhecia” vários de meus sentimentos – e havia me “esquecido” de histórias capitais. Elas estavam em algum lugar de mim, mas até então eu não havia tido oportunidade de trazê-las à superfície e torná-las verbo.

Escrever ao meu pai foi um reconhecimento de sua importância na minha vida. Não no sentido laudatório, mas em tudo o que há dele em mim. Inclusive naquilo que preferia não carregar, até mesmo naquilo em que quero ser diferente dele. Afinal, todos sabemos – ou deveríamos saber – que só nos tornamos adultos quando superamos nossos pais para nos tornarmos nós mesmos.

Nascemos pelo desejo de nossos pais – e crescemos para buscar nosso próprio desejo. Ou, dito de outra forma, existimos por causa do desejo dos pais, mas só alcançamos uma existência autônoma quando assumimos o risco de nossa própria busca. Estes são os bons filhos. E os bons pais são os que esperam ser superados – e não apenas imitados. Superados não no sentido de que os filhos tenham de ser mais bem sucedidos nisso ou naquilo, mas no sentido de que os filhos descubram e construam seu próprio caminho no mundo.

Em minha carta ao meu pai, reconheço tudo o que há dele em mim, a extraordinária importância dele em mim. Mas, ao mesmo tempo em que foi um exercício de reconhecimento, também foi um exercício de diferenciação. Este é você e amo o que você é, até mesmo seus defeitos. Esta sou eu, grata por tudo o que há de você no meu percurso, mas autônoma na medida em que criei outras possibilidades a partir do que aprendi com você. Só podemos ser diferentes – algo muito valorizado em nosso tempo – quando assumimos que viemos de um determinado lugar. Para sermos diferentes temos de admitir a referência, já que só é possível ser diferente em comparação a um outro. Quando identificamos a originalidade do que somos podemos identificar com mais serenidade e justiça a herança de nossos pais. E brigamos muito menos com eles.

Cartas de amor existem para isso. Para reconhecer o outro, elaborar nossos sentimentos pelo outro, dizer aquilo que é importante o suficiente para ser dito. Mas, como todo diálogo verdadeiro, é uma troca. Quando conseguimos dizer ao outro de sua importância numa carta, damos muito – mas também ganhamos muito. Ser capaz de amar melhor tem um efeito fabuloso sobre a vida.

Quando começamos a pensar numa festa para comemorar seus 80 anos, meu pai não estava certo de querer celebrar. Disse isso em uma frase profunda: “Quando eu olho para trás, fico feliz com o que vejo. Mas, para frente, é incerteza”. Ele tem razão. Amanhã é incerteza. Para todos, mais ainda para quem completa 80. Na verdade, acho que, no caso de todos, e também no de meu pai, o que dá medo não é a incerteza – mas a certeza. É por causa da certeza da morte que tecemos a teia de sentidos da nossa vida. É por causa da delicadeza com que teceu sua vida que meu pai vai para o amanhã com a certeza de que amou bem – e é amado com o melhor do que somos.

Encerrei minha carta de amor ridícula ao meu pai na esperança de que ele compreenda que todo ponto final é chegada, mas também é partida: “Use este livro como ponto de chegada, um itinerário amoroso de sua vida pelos olhos nossos. Mas, depois, esqueça-o numa gaveta. E, como Fernando Pessoa, nasça mais uma vez para a eterna novidade do mundo”.

Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).

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