domingo, 18 de setembro de 2011

Já que a saúde pública é pauta obrigatória, fiquemos com a boa literatura (e as reflexões) que pode inspirar. Talento especial para isso os médicos têm e ninguém sabe explicar o porquê. Abaixo, tirado do Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, da lavra do Doutor aí de cima.

A ilha e os cavalos
Nem a arbitraria pátria que, pária, procuro à toa. Nelson Ascher
Ele veio com muita conversa sem muito explicar. Chegou contando histórias. Era médico e sabia tudo da arte de atender pessoas. Caiu em Cachoeira por acidente e por causa de uma fazenda que havia adquirido no Piquiri, ele disse. Tinha um dia disponível na semana para atender na emergência. Nos outros, estava em Porto Alegre dando aulas na faculdade e nos torturantes prontos-socorros ignorados pelos governos. Falei do número excessivo de pacientes, pois onde a OMS estimava que deveria existir 800 atendimentos por mês, atendíamos mais de 4 mil. Retrucou que o trabalho numa emergência de Roma também era demais de exaustivo. Foi um enorme fascínio. Meu Deus, Roma! Contou da dupla cidadania, dos salários quase iguais ao único hospital público do Rio Grande do Sul, o Conceição, onde aquilo que vale 10 para os outros o governo destina mil para eles. A cada quatro horas trabalhadas havia 30 minutos de descanso, com direito a lanches. Também só existe este hospital, sem maior importância, e mais nenhum. Foi eloquente nos elogios à nossa emergência, que sobre certo aspecto físico lembrava o de Roma. Confesso que procurei confirmações da sua existência e credencial, e tudo foi confirmado.
Volta e meia o encontrava para ouvir histórias e perguntar sobre a fazenda do Piquiri. Contou, um dia, que havia terminado de fazer uma ilha no meio de um açude. Ainda mais. Havia colocado cavalos selvagens na ilha. Perguntei: "Pretos?". "Sim", ele confirmou. Somente depois de 10 minutos de fascínio e imagens cinematográficas que fui me perguntar: cavalos pretos correndo numa ilha, sem cair na água... Deve ser uma enorme ilha... Se a ilha for enorme, o que dizer do açude? Se o açude for grande, o que pensar da fazenda?
Foi depois de um dia ou dois que os funcionários do hospital contaram que, ao ouvirem a história da fazenda, pediram para pescar no açude. Todo funcionário adora pescar em açude de fazendas. Pediram e receberam orientações. Entraram pelo Piquiri, saíram em Encruzilhada, retornaram pela Mineração, e até hoje não acharam a tal fazenda. Tomei partido no acreditar na história, pois era mais importante a ilha com cavalos selvagens pretos do que a realidade que nos encerra no dia-a-dia. Se uma lenda é melhor que a realidade, publica-se a lenda.
Numa manhã, lhe falei das denúncias que recebíamos de vizinhos de pacientes que haviam recebido alta do hospital e que roubavam lençóis com o logotipo impresso, secando nos varais de bairros e das vilas. Contei também das escarradeiras, pratos e comadres que sumiam e, solidário, lembrou que, quando trabalhou na Etiópia, na epidemia do vírus ebola, o problema ainda era muito pior. Etiópia, ebola, e me sentei, sendo somente ouvidos. Queria mais, queria saber de tudo sobre o chifre da África e da fome.
Uma noite, subiu na UTI e me afirmou que talvez no fim do ano largasse o plantão. Havia sido convidado para chefiar uma equipe dos "Médecins sans frontières" em algum lugar como Ceilão ou Bangladesh, não lembro ao certo. Sim, ele me afirmou que havia trabalhado nos Médicos sem Fronteiras, nos anos 80, no Sudão.
Algumas vezes falava do Canadá, em outras, de uma ilha perdida no meio do Atlântico, onde morou num farol e atendia a única vila do lugar. Mesmo cansando das fantasias, ouvia as epopeias de delícias e desgraças. Era um vício do qual me alimentava a cada manhã para esquecer a realidade dos descasos. O governo federal investe 3% do PIB em saúde, quando deveria usar 12%, e ninguém é chamado ou responsabilizado na Justiça. O Estado do Rio Grande do Sul apenas investe 4% em saúde, quando deveria investir 13%. O Município investe 18%, e deveria ser 15%, e recebe as pedradas. Todos estão surdos, mudos e inconsequentes. Como o dinheiro federal e estadual não aparece e o direito se faz presente, quem paga a conta são os hospitais e os trabalhadores da área da saúde. Ninguém escreve ao coronel ou à coronela. Ninguém íntima ou pune os estados e a Federação.
Saúde é um direito de todos e dever do Estado. Dever de quem? Falem mais alto! Estamos surdos e mudos. Gritem: dever do Estado! Estamos surdos e tontos, atirando em alvos errados.
Por isso as cidades não arrumam praças nem ruas, muito menos revitalizam espaços e o patrimônio histórico. Os municípios têm que se responsabilizar pela pátria tão pária, distraída e difamante. Centralização excessiva no receber impostos, descentralização doentia ao transferir obrigações sobre aquilo que não cumprem.
Ele mantinha a voz em outras histórias, e todos gostavam dele nas gentilezas e atendimentos. Lembrou da Nicarágua depois que falei da sujeira, dos tocos de cigarros, das sujas fraldas descartáveis atiradas nos canteiros e gramados onde voluntárias plantavam, ajardinavam e limpavam a falta de educação que nos encerra. "A sujeira que nos define". "Como a Nicarágua", ele falou. Não queria mais saber nada da Nicarágua. O que nos salva são os hospitais filantrópicos. Amém.
Não queria mais saber sobre o pai dele, que havia jogado no rolo compressor do Inter, nem da banda do filho, que contou ter aberto o show do U2 em São Paulo.
Tive vontade de saber se foi médico na Sérvia e se ouviu o Bono cantar "Miss Sarajevo" com o Pavarotti. Mas nunca perguntei, tinha ficado sabendo que o Rio Grande conta como investimento em saúde o seu porcentual dirigido ao IPERGS e ao Hospital da Brigada. Sim, o nosso imposto também sustenta uma parte dos planos de saúde dos funcionários públicos.
Nunca mais quis saber dos hospitais de Oslo ou das tendas médicas no Gabão. Os hospitais da região fechando são mais realidade que os Médicos sem Fronteiras. As portas de entrada abertas ao sistema de saúde, cada vez mais lotadas, são alguma coisa que não comporta fantasias, e sim retrata o descaso do Estado e da Federação que chega a ranger, nausear e levar a ter alucinações e fugas para um romantismo médico que não mais existe. Por isso entendi que ele sonhava e, doentiamente, fantasiava quando tudo aqui, às vezes, é pesadelo e irresponsabilidade governamental. Vivia nos sonhos de aventuras como sobrevivência, mas infinitamente mais interessante que esta realidade que corta e dói. Excluindo a gente da realidade da gente.
Assim como ele veio, partiu. Deve ter secado a fonte do contador de histórias ou a fantasia não conseguiu suportar a realidade. Falou em doença, depois em outras paisagens. Parece que vive no litoral. Sempre foi feliz e cordial. Não sei mais notícias da ilha, dos cavalos e do açude.

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