Não li o blog do Janer Cristaldo ontem. Só agora, avisado pelo amigo Marcos Aurélio Serpa Oyhenard, pude constatar outro planchaço do Herege do Ponche Verde no mais notável (e festejado) dos cetegistas, como ele denomina a espécie, o alegretense Antônio Augusto Fagundes - soprando velinhas de 75 anos na foto aí de cima.
Sexta-feira, Dezembro 18, 2009
AOS GIGOLÔS DO GAUCHISMO
Parece que andei ofendendo, em crônica passada, sedizentes brios gaúchos. Digo sedizentes, porque não entendo como gaúcha a cultura dos CTGs. Escreve um leitor: “Agora, é inegável que, pelo bem ou pelo mal, o MTG (Movimento de Tradições Gaúchas) nos seus primórdios resgatou um pedaço da cultura que ia pro lixo, massacrado pelo american way of life (ainda bem que a Coca-Cola ficou). Falar mal dele neste aspecto é também questionar a manutenção dos costumes judaicos, ou alemães (a bandinha, o joelho de porco), ou os baianos com seus rituais etc e tal”.
Cultura que ia pro lixo, massacrada pelo american way of life umas ovas. O país todo continua sendo massacrado pelo american way of life, independentemente de CTGs. Quantos aos costumes judaicos ou alemães, estes sempre existiram. Os costumes atribuídos aos gaúchos pelos cetegistas são fictícios, nunca existiram. A começar pelas ditas danças gaúchas, que foram criadas por publicitários e gigolôs do gauchismo. Defender uma cultura e nela acreditar é uma coisa. Outra coisa é acreditar em ficções, como se realidade fossem. O problema do cetegismo é que, além de mitificar o gaúcho, gera prebendas pagas pelo contribuinte. No fundo, uma velha conhecida nossa. A corrupção, sob capa de defesa das tradições.
Há quem alegue: “Tendo o sr. estudado muito e usufruindo de bolsas internacionais a custo do estado...” Sim, recebi bolsas de estudo - não de Estado - na Espanha e na França. Sem Capes nem CNPq. Dependesse do Brasil, jamais estudaria no Exterior. Nunca fui parasita deste país, onde para ser parasita é preciso ser subserviente e ter pistolão. As bolsas que recebi, não tiveram recomendações de ninguém. Foram decorrências de meu currículo. Fui convidado por Madri e Paris para lá estudar. Do Estado brasileiro, jamais ganhei um centavo. Nem pedi. Jamais onerei o contribuinte brasileiro.
Quanto ao mais, nasci no campo, entre homens do campo, vacas, ovelhas e cavalos. Tudo que faz um homem do campo minhas mãos fizeram, desde carnear ovelha e trançar laço, a castrar terneiros e caçar perdizes em mundéus. Só não tive o prazer de domar um potro, saí muito cedo de meus pagos. E não reconheço como gaúchos essa gente que se fantasia de gaúcho para ir a bailes nos CTGs. São bobalhões urbanos, que se pretendem gaúchos, mas do campo nada conhecem. Não existe gaúcho no asfalto. Não existe gaúcho sem campo.
Curiosamente, lá onde nasci, nos pagos de Ponche Verde, Três Vendas e Upamaruty, ninguém se jacta de ser gaúcho. Gaúchos se pretendem seres urbanos, que nasceram em meio a carros e edifícios, brincando de Batman em corredores de prédios e comendo em churrascarias às quais um gaúcho - falo do verdadeiro - jamais teria acesso. Ser "gaúcho", hoje, custa caro. A começar pelas pilchas. Sem dinheiro, pobre diabo algum consegue ser sócio de CTG. Pra começar, o que ainda resta do gaúcho sequer teria plata para comprar as botas.
Se os donos da cultura no Rio Grande do Sul quiseram um dia chamar de gaúchos os rio-grandenses, nunca houve lei que os impedisse disto. É o homem quem nomeia as coisas, já dizia Platão em Crátilo. As coisas nascem - ou são criadas, descobertas ou inventadas - e em seu ser habita, desde a origem, o inadequado nome que as assinala e distingue das demais. No Uruguai e Argentina, onde há muito mais gaúchos que no Brasil todo, nunca se cometeu esta tolice. Porque uruguaios e argentinos nunca mitificaram o gaúcho.
Não é por acaso que vem de lá o melhor da poesia gauchesca, de autores como Bartolomé Hidalgo (Um gaucho de la Guardia del Monte), Hilario Ascasubi (Santos Vega, el Payador), Estanislao del Campo (Fausto), Antonio Lussich (Los tres gauchos orientales), José Hernández (Martín Fierro), Esteban Echeverría (La Cautiva), Bartolomé Mitre (Armonías de la pampa), Serafim J. Garcia (Tacuruses), Elias Regules (Tapera). Aliás, seria interessante saber se algum dos pretensos defensores do cetegismo ainda sabe o que é um tacuru. Ou um tuco-tuco.
Já no Rio Grande do Sul, que adotou a palavra como gentílico, era preciso enfeitar o personagem. Afinal, não fica bem assumir-se como marginal, ladrão de gado ou degolador. Tenho minhas próprias definições e tampouco há lei que me impeça disto. Só concebo o gaúcho na pampa, entre vacas e cavalos. Gaúcho de asfalto não existe. O que existe no asfalto são palhaços de CTG.
Há quem argumente: “Parece que não é Janer x contestadores, mas uma briga íntima de Janer Cosmopolita x Janer do Ponche Verde". Ora, o Janer cosmopolita é o mesmo do Ponche Verde. Embora hoje não consiga mais viver no campo, prezo muito os pagos de minha infância. Como já dizia Sócrates, a vida no campo é interessante, mas os amigos estão em Atenas. Nasci em campo aberto, o horizonte a léguas de distância, tive meus dias embalados pelo mar verde de alhos-bravos em dias de minuano e até hoje não esqueço o sabor salobre da água de cacimba.
Um dia bati na marca e saí a camperear por este mundo velho sem fronteiras, sempre acompanhado pela lembrança de meus dias de criança. Em Paris ou Estocolmo, em Madri ou Berlim, nunca deixei de ser o “guri do Canário”, como me chamavam. Tentei traduzir isto em Ponche Verde, romance que começa em Paris e termina naqueles pagos. Não vejo conflito algum em ter nascido no campo e depois ter conhecido o planetinha.
Conheço não pouca gente que renega sua infância. Jamais reneguei a minha e dela muito me orgulho. O que estou afirmando é apenas que CTGs são farsas que nada têm a ver com o gaúcho. Ou com o que resta dele, porque o gaúcho mesmo há muito é finado.
Não falta também quem use uma argumentação ad hominem. Se assim escrevo, é porque sou velho e ranzinza. Bom, não posso dizer que sou exatamente jovem, já passei dos 60. Mas me considero mais jovem que muitos jovens. Se assim fosse, então nasci velho e ranzinza. Y a las pruebas me remito. Reproduzo abaixo crônica publicada há 32 anos, onde eu denunciava o caráter de gigolôs do gauchismo de rábulas que, na época, se pretendiam folcloristas.
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AOS BACHARÉIS-FOLCLORISTAS *
Falta quem estude e pesquise o folclore, declarou Antônio Augusto Fagundes a este jornal, porque os salários não atraem. E estes salários que não atraem, diz ainda Antônio, o augusto, chefe do Departamento Cultural do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, oscilam entre Cr$ 7 mil e 9 mil mensais. Pelo que concluímos que Antônio Augusto Fagundes, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, é um abnegado para sujeitar-se a tão baixos salários. Ou proverá seu sustento com a advocacia, pesquisando folclore como bico? Se assim for, me candidato aqui e agora para estudar e pesquisar folclore, pois afinal sete ou nove mil sempre serão bem-vindos a meus bolsos, afinal a caipirinha já está valendo o preço de uma garrafa de cachaça.
Mas desde já encaro com pessimismo minha candidatura a folclorista, pois Antônio, o augusto, diz que os salários não atraem “os poucos especialistas que poderiam trabalhar no setor”. Como cronista, sou um especialista em generalidades e não propriamente em folclore. Em todo caso, não seria demais perguntar que é um especialista em folclore. Será um profissional que cursou a Faculdade de Folclore? Suspeito que não, afinal tal faculdade sequer existe. Será um profissional que fez um cursinho de “Folclore ao Alcance de Todos” com os folcloristas do Instituto? É possível. Neste caso, com quem fizeram o cursinho os atuais professores do cursinho? Por raciocínios deste tipo, até perdi minha crença em Deus, me falavam que toda causa tinha efeito e só Deus era a causa não-causada, e essa não engoli.
Ou para ser folclorista é necessário ser bacharel e gostar das coisas do pago? Se é assim¸ ouso encarar com otimismo minha candidatura a folclorista. De meus pagos, gosto que me pelo, e também sou bacharel em Direito. Tenho diploma, um pergaminho muito bonito por sinal, só não preguei em minhas paredes porque não combinam muito com a cor do papel. Tenho até mesmo um anel que um tio me deu, que já me foi de grande valia. Como a incidência de advogados por metro quadrado é muito grande em Porto Alegre, me recusei a entrar no baile. E muitas vezes botei o anelzinho no prego para pagar aluguel. Que mais não fosse, lá estava melhor guardado que em minhas gavetas. Mas falava de folclore.
Ou, para ser folclorista, será necessário conhecer os costumes e tradições do pago? Se assim for, já me considero aceito pelo Instituto, e juro que não reclamarei dos sete ou nove mil. Me criei nos campos de Upamaruty e Ponche Verde, corri penca e pialei gado, castrei touro e assei nas brasas seus documentos. Tranças de três ou de oito para mim não têm mistérios, também sei tirar lonca e pelar tento. Leio que o Instituto do Folclore está planejando um caderno sobre pandorga e já ofereço meus préstimos: quando guri fiz muita pandorga com taquara de bambu e papel celofane. Faz tempo que não me cai uma taba nas mãos, mas é só acostumar o braço e clavo suerte na volta-e-meia. Ou duas-e-meia, como pedirem.
Que mais será necessário para ser especialista em folclore? Conhecimentos sobre nossa História e Literatura? Também os tenho. Será necessário fazer concurso para ser folclorista? Faço, o salário me parece bom. Será necessário ser amigo dos atuais folcloristas para ser folclorista? Me considerem os folcloristas, daqui pra frente, o mais generoso amigo.
Sou candidato, meu caro Antônio Augusto, à boca, digo, ao cargo de folclorista. Não ignoro os conselhos do viejo Vizcacha:
A naides tengás envidia,
Es muy triste el envidiar,
Cuando veas a otro ganar,
A estorbarlo no te metas –
Cada lechón en su teta,
Es el modo de mamar.
Sei disso. Mas como, ao que tudo indica, estão sobrando algumas tetas, também quero mamar.
* Porto Alegre, Folha da Manhã, 29/08/1977

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