sábado, 19 de junho de 2010




OUTRA CRÔNICA DA VALERIA SURREAUX, AGORA COM TRILHA SONORA ... PODRE DE CHIQUE, DIRIA ALGUÉM!


Nada Feito.

Duas da tarde de um janeiro escaldante. Caminho por ruas desertas, quando o asfalto termina sinto abandono e um medo que me faz olhar para trás várias vezes. Um homem estranho atravessa a rua e encosta-se ao muro pichado, puxa um papel do bolso e abre devagar. Penso que pode ser um assaltante. Hesito, não sei se volto ou sigo pela rua pedregosa. Decido seguir. Agarro a bolsa com força pela alça embora eu leve apenas uma carteira vazia, um leque, papéis com desenhos das minhas filhas e um estojo azul onde guardo meus calmantes e analgésicos. Quando passo por ele olho dentro de seus olhos injetados, ele devolve o olhar, caminho com passos firmes. Olho para trás, o homem segue me olhando, meu coração acelerado. Ele atravessa a rua novamente, vejo que caminha sem muito equilíbrio. Um borracho somente, constato com alívio. Me livrei dessa, mas não sei se o arrabalde não me oferecerá outro susto. Um cusco coça as pulgas na frente de um rancho. Sinto o suor escorrendo pela minha nuca e uma sensação de pressão baixa, de desmaio iminente. Preciso de água. Ainda faltam, pela minha memória, umas quatro quadras para chegar à casa do meu tio-avô. Nunca entendi porque sempre foi pobre, diferente do resto dos irmãos do meu avô. De todos eles, o único vivo. Não o vejo há anos, mas guardo com doçura nas minhas lembranças seus viveiros cheios de passarinhos, os estoques de alpiste em latas enferrujadas, o rádio de pilha na cozinha na hora dos comunicados, as visitas domingueiras que fazia è ele de mãos dadas com minha avó, o cheiro de bolo e café com leite. Agora, tanto tempo depois caminho pelas ruas da minha infância, faço o mesmo percurso e parece que o tempo parou. Chego enfim a casa. Agora pintada de alaranjado. Bato palmas, um cachorro late anunciando minha presença. Espero , o tempo se arrasta, parece não ter fim, quase desisto. Enfim ele aparece nos fundos pela porta da cozinha. Custo a reconhecê-lo embora o tempo não tenha lhe roubado os olhos bons, de um azul claríssimo, o bigode amarelado de nicotina e as mãos enormes e ossudas. Caminha até o portão com dificuldade, arrastando os chinelos, curvado, apoiando-se na bengala. Apertava os olhos para tentar me enxergar. Tio, digo, e minha voz sai rouca, embargada e sinto uma emoção que não imaginava sentir, me pegou desprevenida com os olhos embaçados de lágrimas. Um sentimento de culpa por não tê-lo visitado durante todos esses anos. Depois que minha avó morreu ainda vim algumas vezes, mas depois abandonei completamente as visitas. Ele tem um filho, tem netos, não é sozinho pensei para me absolver. Achei que ele não me reconheceria e já começava a me reapresentar quando ele abriu um largo sorriso, encostou a bengala no muro baixo e me abraçou forte.

-Minha menina!

Caminhamos abraçados até a cozinha. Ele foi ao fogão preparar um café. Antes trouxe um copo de água adivinhando minha sede. Quis me desculpar pelos anos de ausência, mas achei que seria pior. Ele estava feliz e isso que interessava. Falava sem parar, agradecia muito por eu ter ido. Tomamos o café, dávamos as mãos, fazíamos perguntas um ao outro. Eu precisava pedir a chave do jazigo da família, era para isso que eu tinha ido até lá. Meu irmão sempre me delegou tarefas complicadas alegando que eram coisas de mulher. Precisávamos tirar os restos mortais do meu avô da parede e coloca-los em uma urna dentro do jazigo. Poderíamos colocar a urna no jazigo da família da minha avó, mas não seria o ideal.

Entre as palavras ele suspendia um sorriso nas reticências e seus olhos brilhavam. Que alegria, minha menina, teres lembrado deste velho. Contou-me suas perdas, sua intolerância com os latidos do cusco, da novela mexicana que ele acompanhava, do fim de seus passarinhos, “muito trabalho para um velho capenga”. A horta estava linda, ele fez questão que eu levasse chicórias, alfaces, mudas de hortelã. Os limões ficam pra próxima, tio, estou a pé. Mas ganhei uma limonada, feita na hora, batida com gelo no liquidificador. Abriu gavetas, me mostrou fotos antigas e uma em que eu ria num balanço. “Balanço que fiz sozinho, um trabalhão do cão, tive que subir no alto da goiabeira, lembra? Não podes lembrar, eras pequetitinha assim”. Me contou dos netos, da viagem que fez para a Bahia para visita-los. Me arrependi por todos os anos que não fui vê-lo, de todas as histórias que ficaram longe de mim. Nos despedimos num longo abraço. Ao dobrar a esquina olhei para trás, ele ainda estava no portão me olhando curvado em sua bengala. Joguei-lhe um beijo, ele me acenou sorrindo.

De noite meu irmão me telefonou:

-E aí, conseguiste?

-Nada feito. Acho que é esclerose. Vamos deixá-lo no jazigo da vó!


PS.: deve ter sido publicada no Tribuna de Uruguaiana ...

Um comentário:

  1. A Valéria é estupenda.Nos faz rir e chorar,mas nunca nos deixa sem emoção.Parabéns

    Felipe Conte

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